Um poema de Adélia Prado
Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como ‘este foi difícil’
‘prateou no ar dando rabanadas’
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.
O conhecido poema Casamento, de Adélia Prado, saiu no livro Terra de Santa Cruz, de 1981, seu terceiro livro, depois do impacto de Bagagem (1975) e de O coração disparado (1978). Confirmando sua importância, ele participa — juntamente a Com licença poética, do livro de estreia — da antologia Os cem melhores poemas brasileiros do século (organização de Italo Moriconi). Em estrofe única de 16 versos, os leitores testemunhamos uma cena idílica, caseira, amorosa, em que marido e mulher, solidários e em silêncio, preparam juntos um peixe e, após, ao que se sugere, prolongam a relação, agora mais íntima, erótica, sexual. O poema comove, seduz, deseja acionar em nós um estado de felicidade e prazer que, no entanto, o princípio de realidade tem desmanchado e desfeito com frequência.
A cena é de harmonia e cumplicidade conjugal. Os versos de abertura (“Há mulheres que dizem: /(…)/ Eu não”) provocam, porém, sem rodeios, aquelas mulheres que, em perspectiva feminista (o que inclui autonomia e insubmissão em relação ao poder patriarcal e logofalocêntrico de maridos, patrões, padres e quejandos), se recusam à subalternidade a que foram historicamente forçadas, nas mais diversas situações — familiares, profissionais, sexuais, existenciais. Na contramão do enfrentamento, o poema de Adélia procura a pacificação, o equilíbrio, a reciprocidade. Há quem veja, contudo, no gesto da cônjuge, “uma força atuante, quando o que normalmente existe é passividade e resignação” (Neusa Steiner) e mesmo “uma mulher transgressora, pois ela quer e vai atrás de seus desejos” (Egberto Vital).
O metafísico tom da lírica adeliana comparece em especial nos versos “O silêncio de quando nos vimos a primeira vez/ atravessa a cozinha como um rio profundo”, quando a lembrança romântica do silêncio da “primeira vez” se impõe ao presente comezinho da cena na cozinha com a força natural de um “rio profundo”, como se palavras (explicativas, racionais) fossem não só insuficientes, mas conspurcadoras da beleza do mágico instante. Mais sutil, mas não menos mística, a metáfora dos peixes funciona bem no poema, afinal, com intensa ressonância bíblica, os peixes indiciariam pureza e proliferação, como aparenta o feliz casal. Daí não espanta que um dos peixes “prateou no ar dando rabanadas”, tal como, quando noivo e noiva, “coisas prateadas espocam”, pois a imagem dos “peixes na travessa”, por metonímia, antecipa a imagem do casal na cama. Assim como os peixes, marido e mulher se encontram navegando em “rio profundo”.